“SE A REALIDADE NOS ALIMENTA COM LIXO, A MENTE PODE NOS ALIMENTAR COM FLORES”.
CAIO F.

domingo, 31 de maio de 2009

AMOR


Na véspera de ti

eu era pouca

e sem

sintaxe

eu era um quase

uma parte

sem outra

um hiato

de mim.



No agora de ti

aconteço

tecida em ponto

cheio

um texto

com entrelinhas

e recheio:



um preciso corpo

um bastante sim.
Maria Esther Maciel

CANÇÃO DA ALMA CAIADA


Aprendi desde criança
Que é melhor me calar
E dançar conforme a dança
Do que jamais ousar

Mas às vezes pressinto
Que não me enquadro na lei:
Minto sobre o que sinto
E esqueço tudo o que sei.

Só comigo ouso lutar,
Sem me poder vencer:
Tento afogar no mar
O fogo em que quero arder.

De dia caio minh'alma
Só à noite caio em mim
por isso me falta calma
e vivo inquieto assim.

Antonio Cícero

POESIA MATEMÁTICA



Às folhas tantas
Do livro matemático
Um Quociente apaixonou-se
Um dia
Doidamente
Por uma Incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável
E viu-a, do Ápice à Base,
Uma Figura Ímpar;
Olhos rombóides, boca trapezóide,
Corpo otogonal, seios esferóides.
Fez da sua
Uma vida
Paralela a dela
Até que se encontraram
No Infinito.
"Quem és tu?"indagou ele
Com ânsia radical.
"Sou a soma dos quadrados dos catetos.
Mas pode me chamar de Hipotenusa."
E de falarem descobriram que eram
- O que, em aritmética, corresponde
A almas irmãs -
Primos-entre-si.
E assim se amaram
Ao quadrado da velocidade da luz
Numa sexta potenciação
Traçando
Ao sabor do momento
E da paixão
Retas, curvas, círculos e linhas sinoidais.
Escandalizaram os ortodoxos das fórmulas euclideanas
E os exegetas do Universo Finito.
Romperam convenções newtonianas e pitagóricas.
E, enfim, resolveram se casar
Constituir um lar.
Mais que um lar,
Uma perpendicular.

Convidaram para padrinhos
O Poliedro e a Bissetriz.
E fizeram planos, equações e diagramas para o futuro
Sonhando com uma felicidade
Integral
E diferencial.
E se casaram e tiveram uma secante e três cones
Muito engraçadinhos
E foram felizes
Até aquele dia
Em que tudo, afinal,
Vira monotonia.
Foi então que surgiu
O Máximo Divisor Comum
Freqüentador de Círculos Concêntricos.
Viciosos.
Ofereceu-lhe, a ela,
Uma Grandeza Absoluta,
E reduziu-a a um Denominador Comum.
Ele, Quociente, percebeu
Que com ela não formava mais Um Todo,
Uma Unidade. Era o Triângulo,
Tanto chamado amoroso.
Desse problema ela era a fração
Mais ordinária.
Mas foi então que o Einstein descobriu a Relatividade
E tudo que era expúrio passou a ser
Moralidade
Como, aliás, em qualquer
Sociedade.

Millôr Fernandes

sexta-feira, 29 de maio de 2009

OS ÓCULOS



Eu amo o homem de óculos.
Eu amei todos os homens de óculos.

Pra mim,
a parte essencial,
a parte inevitável do homem,
é plural:
são os óculos.

Porque os óculos sempre participam
do meu amor,
barroco amor em crise;
os óculos são um fetiche:
há sempre o momento
dos óculos fazerem strip-tease
e daí o homem fica vesgo de amor
e os olhos do homem
ficam trasprafrente,
transparentes.

Eu amo a mais
os homens vesgos e estrábicos
e estigmáticos.
A tortura dos olhos do homem
me tortura,
me estigmatiza.
(Ah, toda a doçura,
toda a pieguice,
toda a gostosura
que há na vesguice...)

Porque é sério,
é muito sério mesmo, meu poeta,
o homem atrás dos óculos;
mas quando ele os retira,
se transforma, há um pretexto
pra ficar o outro homem
e a gente ama
como se cometesse um incesto.

Eu amo os homens de óculos
porque foram capazes de se cegarem
diante de mim e de me amar (amarem?)
de me amar sem nenhuma visão,
que a do seu próprio e mais cego
coração
(a grandiosa visão de um só momento).

Eu amo os homens
que foram capazes
de me enxergar
por dentro.

Yêda Schmaltz

quinta-feira, 28 de maio de 2009

PALAVRAS (QUASE) INVENTADAS


Daqueles que eu queria dizer
estradei, passarinhando
em uma busca desenfreada
pela palavra certa
Anoiteci-me na procura
em períodos em que me fiz sujeito
e sujeitei-me adverbiante
por não achar-te em vocábulos
Sampleei os grandes
quintaneando com maestripulias
palavras novas pra descrever-te
mas tropecei em pedras drummondianas
Concedi-me um fracasso heróico,
descobri-me não inventante,
palavra boa, palavra nova,
não descrevem meu desejo alucinante.
Como definir-te, se nem a mim o fiz ainda?
sendo assim, volto ao velho e bom chavão:
Minha neguinha, você é linda.

Adilson Sobrinho

domingo, 24 de maio de 2009

TRÊS METADES


Meio dia,
um dia e meio,
meio dia, meio noite,
metade deste poema
não sai na fotografia,
metade, metade foi-se.

Mas eis que a terça metade,
aquela que é menos dose
de matemática verdade
do que soco, tiro, ou coice,
vai e vem como coisa
de ou, de nem, ou de quase.

Como se a gente tivesse
metades que não combinam,
três partes, destempestades,
três vezes ou vezes três,
como se quase, existindo,
só nos faltasse o talvez.

Paulo Leminski

MEU DESTINO


Nas palmas de tuas mãos
leio as linhas da minha vida.
Linhas cruzadas, sinuosas,
interferindo no teu destino.
Não te procurei, não me procurastes –
íamos sozinhos por estradas diferentes.
Indiferentes, cruzamos
Passavas com o fardo da vida...
Corri ao teu encontro.
Sorri. Falamos.
Esse dia foi marcado
com a pedra branca
da cabeça de um peixe.
E, desde então, caminhamos
juntos pela vida...
Cora Coralina

A PERFEIÇÃO

O que me tranqüiliza
é que tudo o que existe,
existe com uma precisão absoluta.


O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete
não transborda nem uma fração de milímetro
além do tamanho de uma cabeça de alfinete.


Tudo o que existe é de uma grande exatidão.
Pena é que a maior parte do que existe
com essa exatidão
nos é tecnicamente invisível.


O bom é que a verdade chega a nós
como um sentido secreto das coisas.


Nós terminamos adivinhando, confusos,
a perfeição.

Clarice Lispector

sábado, 23 de maio de 2009

CHAMO-TE


Chamo-te porque tudo está ainda no princípio
E suportar é o tempo mais comprido.

Peço-te que venhas e me dês a liberdade,
Que um só dos teus olhares me purifique e acabe.

Há muitas coisas que eu quero ver.

Peço-Te que sejas o presente.
Peço-Te que inundes tudo.
E que o teu reino antes do tempo venha.
E se derrame sobre a Terra
Em primavera feroz pricipitado.

Sophia de Mello Breyner Andresen

PEQUENAS EPIFANIAS

Que coisa! Como pequenas coisas me lembram coisas!
Achei hoje pela casa um palito de fósforo quebrado ao meio, sorri, segurei-o com força e ele se perdeu em minha mão fazendo também agora parte de minhas lembranças.
Era assim que disputávamos de quem seria a obrigação do lavar a louça após as refeições. Ainda na sobremesa já definíamos o sofredor em quem tirasse o menor palito. Deu uma saudade!
Ouço Nando Reis e inevitavelmente viajo em algumas aventuras, lembranças..., toco Linger, não sou Cramberries, mas me emociono a cada acorde, lembranças...
Ontem, passando por uma livraria, avistei o Neruda falando de amor. Foi um presente, não um empréstimo; foi um presente, não tem que devolver, afinal você não me tomou e sempre lê, lembranças...
Acho fantástica essa relação que o subconsciente faz de pequenas coisas X grandes momentos. Os cheiros são a melhor parte. Do perfume suave ao cheiro marcante de camarão, vem de súbito memórias de mim e outros ou outras, nem é preciso esforço. Aquela mulher que passa por mim cheirando a organza, me vira imediatamente o pescoço e me faz buscar uma presença fantasma de alguém, acompanho-a com os olhos, não era quem eu queria, apenas uma provocação feita ao meu olfato.
Vejo-me passeando pelas avenidas, descuidadamente procurando uma mão para entrelaçar meus dedos, ridiculamente em vão, o melhor remédio são os bolsos, que me dão um pouquinho do calor que procuro.
O garçom que me atende é o mesmo que me serviu da última vez que estive naquele restaurante, não estava sozinho e mesmo ele me trouxe lembranças de momentos bons, e eu ainda me surpreendo em como alguém pode não gostar de peixe!
Comprei uma garrafa térmica, daquelas que custam bem pouco, afinal eu detesto café em garrafas térmicas. Fiz isso por ela e hoje a tal garrafa térmica, que custa bem pouco, não sai do meu lado e o café que ela contém traz um sabor incomparável, sabor de lembranças, sabor de saudade, sabor de amor.
Não voltei mais à rodoviária, ela me remete a idas, quando de lá eu só quero vindas. Aquele prédio sem muita arquitetura me aborrece, ao passo que seu setor de desembarque me faz ficar aguardando a descida de um anjo, mais uma vez, em vão.
Essas aparições diárias me fazem, em última instância, companhia. É ruim ficar vivendo de lembranças, mas, pior seria não tê-las. Eu não vibraria tanto ao soar do telefone, não daria hoje as cores que dou ao mundo, não me manteria sempre barbeado à espera de algum milagre e nem manteria sem uso aquela camisa que ela tanto gosta.
Aguardo, enquanto sinto sons e cheiros, que essas pequenas ansiedades não passem o resto de minha vida sendo pequenas epifanias.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

CANÇÃO DESSE RUMOR


Quem - estando ausente - entra no quarto
Quem deita ao lado meu, quem passa
No meu coração seus lábios quentes, quem
Desperta em mim as feras todas
Quem me rasga e cura
Quem me atrai?

Quem murmura na treva e acende estrelas
Quem me leva em marés de sono e riso
Quem invade meu dia após a noite
Quem vem – estando ausente -
E nunca vai?

Lya Luft

TRISTEZAS DA LUA


Divaga em meio à noite a lua preguiçosa;
Como uma bela, entre coxins e devaneios,
Que afaga com a mão discreta e vaporosa,
Antes de adormecer, o contorno dos seios.

No dorso de cetim das tenras avalanchas,
Morrendo, ela se entrega a longos estertores,
E os olhos vai pousando sobre as níveas manchas
Que no azul desabrocham como estranhas flores.

Se às vezes neste globo, ébria de ócio e prazer,
Deixa ela uma furtiva lágrima escorrer,
Um poeta caridoso, ao sono pouco afeito,

No côncavo das mãos toma essa gota rala,
De irisados reflexos como um grão de opala,
E bem longe do sol a acolhe no seu peito.

Charles Baudelaire

domingo, 17 de maio de 2009

NOVA CANÇÃO DO EXÍLIO


Minha amada tem palmeiras
Onde cantam passarinhos
e as aves que ali gorjeiam
em seus seios fazem ninhos

Ao brincarmos sós à noite
nem me dou conta de mim:
seu corpo branco na noite
luze mais do que o jasmim

Minha amada tem palmeiras
tem regatos tem cascata
e as aves que ali gorjeiam
são como flautas de prata

Não permita Deus que eu viva
perdido noutros caminhos
sem gozar das alegrias
que se escondem em seus carinhos
sem me perder nas palmeiras
onde cantam os passarinhos

Ferreira Gullar

SOB O SIGNO DA INQUIETAÇÃO


O susto em nós foi avançar muito pra dentro
do proibido. Muito pra perto de uma zona
perigosa. A boca da noite. O desconhecido.
Vagos caminhos de uma via nebulosa.

Vários conceitos pra falar da mesma coisa
o susto em nós foi descobrir porteiras
de territórios nunca antes percorridos
no fundo de todos nós um visitante
no fundo a falta de sentido

Visitantes de nós mesmos cometeríamos
a imprudência de quase enlouquecer
pra chegar à compreensão.
E uma coisa afiada nos conduzia
através da trilha da poesia
e do difícil trajeto da paixão.

Bruna Lombardi

FRUTOS E FLORES


Meu amado me diz
que sou como maçã
cortada ao meio.
As sementes eu tenho
é bem verdade.
E a simetria das curvas
Tive um certo rubor
na pele lisa
que não sei
se ainda tenho.
Mas se em abril floresce
a macieira
eu maçã feita
e pra lá de madura
ainda me desdobro
em brancas flores
cada vez que sua faca
me traspassa.

Marina Colassanti

QUE ESTE AMOR NÃO ME CEGUE NEM ME SIGA


Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua de estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.

Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena. E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.

Que este amor só me veja de partida.

Hilda Hilst

TODAS AS VIDAS


Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando pra o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...

Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho,
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.

Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.

Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.

Vive dentro de mim
a mulher roceira.
– Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos.
Seus vinte netos.

Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.

Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida –
a vida mera das obscuras.

Cora Coralina

TEU CORPO SEJA BRASA


teu corpo seja brasa
e o meu a casa
que se consome no fogo


um incêndio basta
pra consumar esse jogo
uma fogueira chega
pra eu brincar de novo

Alice Ruiz

AMOR FEINHO


Eu quero amor feinho.
Amor feinho não olha um pro outro.
Uma vez encontrado, é igual fé,
não teologa mais.
Duro de forte, o amor feinho é magro, doido por sexo
e filhos tem os quantos haja.
Tudo que não fala, faz.
Planta beijo de três cores ao redor da casa
e saudade roxa e branca,
da comum e da dobrada.
Amor feinho é bom porque não fica velho.
Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é:
eu sou homem você é mulher.
Amor feinho não tem ilusão,
o que ele tem é esperança:
eu quero amor feinho.
Adélia Prado

MULHER AO ESPELHO


Hoje, que seja esta ou aquela,
pouco me importa.
Quero apenas parecer bela,
pois, seja qual for, estou morta.

Já fui loura, já fui morena,
já fui Margarida e Beatriz,
já fui Maria e Madalena.
Só não pude ser como quis.

Que mal fez essa cor fingida
do meu cabelo, e do meu rosto,
se é tudo tinta: o mundo, a vida,
o contentamento, o desgosto?

Por fora, serei como queira,
a moda, que vai me matando.
Que me levem pele e caveira
ao nada, não me importa quando.

Mas quem viu, tão dilacerados,
olhos, braços e sonhos seus,
e morreu pelos seus pecados,
falará com Deus.

Falará, coberta de luzes,
do alto penteado ao rubro artelho.
Porque uns expiram sobre cruzes,
outros, buscando-se no espelho.
Cecilia Meireles

POÉTICA (I)


De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.

Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
— Meu tempo é quando.
Vinicius de Moraes

JOGOS FLORAIS


Jogos Florais I

Minha terra tem palmeiras
onde canta o tico-tico
Enquanto isso o sabiá
vive comendo o meu fubá

Ficou moderno o Brasil
ficou moderno o milagre
a água já não vira vinha
vira direto vinagre


Jogos Florais II

Minha terra tem palmares
memória cala-te já
Peço licença poética
Belém capital Pará

Bem, meus prezados senhores
dado o avanço da hora
errata e efeitos do vinho
o poeta sai de fininho.

(será mesmo com esses dois esses
que se escreve paçarinho?)
Cacaso

SONETO


Quando jura ser feita de verdades,
Em minha amada creio, e sei que mente,
E passo assim por moço inexperiente,
Não versado em mundanas falsidades.
Mas crendo em vão que ela me crê mais jovem
Pois sabe bem que o tempo meu já míngua,
Simplesmente acredito em falsa língua:
E a patente verdade os dois removem.
Por que razão infiel não se diz ela?
Por que razão também escondo a idade?
Oh, lei do amor fingir sinceridade
E amante idoso os anos não revela.
Por isso eu minto, e ela em falso jura,
E sentimos lisonja na impostura.
William Shakespeare

CANTIGA PARA NÃO MORRER


Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.
Ferreira Gullar

UMA CANÇÃO

Minha terra não tem palmeiras...
E em vez de um mero sabiá,
Cantam aves invisíveis
Nas palmeiras que não há.

Minha terra tem relógios,
Cada qual com sua hora
Nos mais diversos instantes...
Mas onde o instante de agora?

Mas onde a palavra "onde"?
Terra ingrata, ingrato filho,
Sob os céus da minha terra
Eu canto a Canção do Exílio!
Mário Quintana

sábado, 9 de maio de 2009

NÃO SE MATE

Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.

Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.

O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê,
pra quê.

Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém, ninguém sabe nem saberá.

Carlos Drummond de Andrade

CANÇÃO NA PLENITUDE

Não tenho mais os olhos de menina
nem corpo adolescente, e a pele
translúcida há muito se manchou.
Há rugas onde havia sedas, sou uma estrutura
agrandada pelos anos e o peso dos fardos
bons ou ruins.
(Carreguei muitos com gosto e alguns com rebeldia.)

O que te posso dar é mais que tudo
o que perdi: dou-te os meus ganhos.
A maturidade que consegue rir
quando em outros tempos choraria,
busca te agradar
quando antigamente quereria
apenas ser amada.
Posso dar-te muito mais do que beleza
e juventude agora: esses dourados anos
me ensinaram a amar melhor, com mais paciência
e não menos ardor, a entender-te
se precisas, a aguardar-te quando vais,
a dar-te regaço de amante e colo de amiga,
e sobretudo força — que vem do aprendizado.
Isso posso te dar: um mar antigo e confiável
cujas marés — mesmo se fogem — retornam,
cujas correntes ocultas não levam destroços
mas o sonho interminável das sereias.
Lya Luft

O AMOR É UMA COMPANHIA

O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.

Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio.

Alberto Caeiro

A PRIMEIRA VEZ QUE ENTENDI

A primeira vez que entendi do mundo
alguma coisa
foi quando na infância
cortei o rabo de uma lagartixa
e ele continuou se mexendo.

De lá pra cá
fui percebendo que as coisas permanecem
vivas e tortas
que o amor não acaba assim
que é difícil extirpar o mal pela raiz.

A segunda vez que entendi do mundo
alguma coisa
foi quando na adolescência me arrancaram
do lado esquerdo três certezas
e eu tive que seguir em frente.

De lá pra cá
aprendi a achar no escuro o rumo
e sou capaz de decifrar mensagens
seja nas nuvens
ou no grafite de qualquer muro.
Affonso Romano de Sant'Anna

TRADUZIR-SE


Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?
Ferreira Gullar

quarta-feira, 6 de maio de 2009

ARTE SEM PALAVRAS











Gregory Colbert, fotógrafo e produtor de filmes, nsceu em 1960 em Toronto, no Canadá, tendo se tornado conhecido como o criador de Ashes and Snow, que consiste numa coletânea de obras fotográficas, filmes e um romance epistolar, todos eles companheiros de viagem de um museu itinerante, o Normandic Museum, uma estrutura temporária exclusivamente concebida para acolher a exposição. O trabalho explora as sensibilidades poéticas partilhadas pelos seres humanos e pelos animais e já foi visto por mais de 10 milhões de pessoas em diversas partes do mundo.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

QUERER

Não te quero senão porque te quero

E de querer-te a não querer-te chego

E de esperar-te quando não te espero

Passa meu coração do frio ao fogo.

Te quero só porque a ti te quero,

Te odeio sem fim, e odiando-te rogo,

E a medida de meu amor viageiro

É não ver-te e amar-te como um cego.

Talvez consumirá a luz de janeiro

Seu raio cruel, meu coração inteiro,

Roubando-me a chave do sossego.

Nesta história só eu morro

E morrerei de amor porque te quero,

Porque te quero, amor, a sangue e a fogo.

Pablo Neruda

SONHAR É ACORDAR-SE PARA DENTRO.
Mário Quintana